Segue mais um artigo que fala sobre Madrugada, me Proteja!
Por Adélcio de Sousa Cruz
Cuti e sua lâmina-palavra...
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
(CUTI: trecho inicial do poema “Quebranto”)
O poeta, dramaturgo Cuti é uma das vozes críticas mais combativas da literatura negra, pois é assim que ele autodenomina sua produção literária e artística. Não nos estenderemos aqui sobre essa “diferença”, deixaremos ao sabor dos excertos escolhidos, a começar pela epígrafe com versos de um dos poemas mais citados e utilizados em cursos de literatura e culturas negras e afro-brasileiras. Vale marcar a formação acadêmica do autor: é doutor em Literatura Brasileira pela UNICAMP. Como se pode notar, ele é, no mínimo, um daqueles raros artífices que maneja “sete instrumentos”... é plural em sua singularidade... não abre mão disso.
Escolhemos o subtítulo de lâmina-palavra para tentarmos expressar o corte promovido pela escrita de Cuti na pele textual da literatura canônica brasileira. Ao trazer à cena um eu-lírico que anuncia ser “o policial que me suspeita” põe abaixo a porta corta-fogo da pseudo-democracia racial: o racismo se faz tão violento que se entranha na mente daqueles que são o alvo da discriminação. Esse mote encontra-se presente na dramaturgia do escritor, no monólogo de ato único “Madrugada, Me proteja!” (CUTI, 1995), no qual a personagem Celso (rapaz negro, entre 30 e 40 anos, usando terno e gravata) se vê mergulhado numa situação das mais inusitadas para um negro/afro-brasileiro: é obrigado a dirigir o carro do patrão até o bairro de classe média alta, ou como está presente no texto, “uma rua de bairro grã-fino”, e Celso deve retornar a pé para casa. É uma história que não pode acabar em “final feliz”, mesmo a personagem Celso trazendo dentro de si “o policial que me suspeito” e avisando-o constantemente a não se meter em encrencas. É, às vezes, ironicamente esse “intruso” parece ser útil... Mas, Celso não o ouviu...
CELSO
--(Dando sinal) Táxi! . . . Táxi! . . . Táxi! . . .
O som do veículo se afasta.
CELSO
--Merda! Vaziozinho . . . Esse aí tem a mãe na zona. Corno do cacete! Só pode ser um chifrudo um cara desse. Porra! Vê uma pessoa na rua a uma hora essa . . . (Olha no relógio) Três e meia! É um canalha. Eu não estou mal arrumado nem nada?! Pô, quando o cara tá todo esculachado, aí vá lá . . . Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta . . . Mas, um crioulo na maior estica . . . ? Terno em cima, cabelo cortado, barba feita, desodorante do mais caro, grana no bolso . . . Vem um safado com um "poisé» caindo os pedaços-que o meu vale 100 daquela porcaria-vem, precisando ganhar o leite das crianças, eu dou sinal, a figura não pára!? (Indignado) E deve ser um fodido . . . Porque um cara pra pegar um carro e ficar à noite toda atrás de freguesia só pode estar na pior. Ou então é ganancioso. Trabalha num emprego de dia, dá uma cochilada à noitinha e sai à luta de novo pra ver se enriquece. Enriquece porra nenhuma! Tá mais fácil dormir no volante, dar uma porrada com o carro e pronto . . . Era uma vez! (Pausa) Esses caras . . . Vai ver que aquele viado não gosta de preto. Será que não me viu? Viu! . . . Olhou pra minha cara e virou o rosto, como quem diz: "Te vira, negrão!" É . . . Viu sim. Acho que . . . É, ele passou debaixo da luz do poste. Sou capaz de adivinhar: tem trauma de infância. Vai ver que algum crioulinho enrabou ele quando era pequeno. (Pausa. Resignado, mas com certa mágoa) Não tem nada . . . (Descontraído) Mas que vai furar o pneu na próxima esquina, vai! . . .
Barulho de outro automóvel se aproximando.
CELSO
(Dando o sinal)
Táxi! Táxi! . . .
O barulho se afasta.
O leitor e/ou o espectador da peça já percebe pela fala da personagem como diversos pré-conceitos sobre o “Outro” estão presentes na mente e no dia-a-dia de Celso. Ele parece esquecer de si mesmo e do que lhe espera... Um homem negro andando pelas ruas do bairro que não lhe é “naturalmente” destinado, desfiando pensamentos preconceituosos a respeito do taxista que o deixou a “ver navios” madrugada afora. Paradoxalmente, até tenta compreender o “receio” do chofer de praça “Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta”. Celso se irrita: “Vai ver que aquele viado não gosta de preto”, repetindo o discurso homofóbico. Logo em seguida ensaia uma “praga”, o pneu pode furar na próxima esquina. Mas nada adiantaria... Será que sua única protetora poderia ser somente a madrugada, como o título nos sugere? Parece que ela, a madrugada será apenas a testemunha das desventuras que a personagem está por vivenciar: ser assaltado, ficar sem documentos, sem lenços e sem dignidade:
Ouve-se um estampido e os passos de alguém correndo. Celso cai e fica imóvel. Pausa. Som de sirene de rádio-patrulha. Celso levanta-se em pânico. Tenta se cobrir com as mãos, mas termina optando pela fuga. Corre pelo palco. Um foco de luz agita-se na perseguição. Ouvem-se mais tiros. Quando o som da sirene aproxima-se ao máximo, Celso já está acuado, sob o foco de luz.
VOZ
(Off)
Documento! . . .
Celso, derrotado, cobre a genitália. Expressa profunda indignação. Por fim, começa a rir, num crescendo. Traduz indignação e graça. Chega à gargalhada de pura gozação, mantendo sempre as mãos sobre a genitália. Súbito, petrifica-se. Vira estátua. A luz vai amortecendo. Simultaneamente, ouve-se um hino cívico assobiado.
O desfecho da peça nos remete ao riso do “Acrobata da dor”, poema de Cruz e Sousa. O riso convulso dos emparedados entre a “linha de cor” e a de classe, mesmo que Celso seja um “crioulo na maior estica” (usa terno e gravata). Nada, nem mesmo a madrugada mal serviria de testemunha, quanto mais de proteção... O texto dramático retrata a situação inimaginável para qualquer pessoa que, como Celso, pensa estar livre da “linha de cor”, pelo simples fato de ter ultrapassado a “linha de classe”, “um crioulo na maior estica”, bem trajado e empregado. Como Fanon antevia: as máscaras caem e só nos resta os corpos...
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